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Fernand Schwarz |
O materialismo espiritual
trabalha sobre a consciência, sobre o ego, por meio de muitas formas de auto-ilusões
forjadas pelo pequeno eu que se crê equilibrado e homogêneo e que toma
o lugar do ser interior. O pequeno eu peca por narcisismo. É devido a
isto que falamos de auto-ilusões. Agrada-lhe crer no que lhe
convém, no que mais lhe interessa: eu sou brioso, eu sou bom, eu sou generoso,
extraordinário, etc... Cada um de nós leva na bagagem uma auto-ilusão: um
espelhismo, uma projeção do que crê ser o que lhe convém. Alguns gostam de dizer que sofrem,
outros que não sofrem, outros que não necessitam de nenhum carinho, outros pelo
contrário, não cessam de repetir: "Ninguém me quer, ninguém gosta de
mim".
Cada qual com as suas próprias
auto-ilusões, que são muito diferentes de indivíduo para indivíduo. Isto é o
que deixamos ver aos demais. Chama-se auto-ilusão a todas essas formas mentais
que fabricamos para nos apresentarmos aos demais e que acreditamos serem os
nossos melhores cartões de visita para que os outros nos aceitem, nos julguem e
nos considerem bem.
Estes são os milhares de rostos que
fabricamos com a ajuda de técnicas materiais ou espirituais, postas ao serviço
do ego para que seja aceite. São os vários disfarces fabricados pela Alma
porque, desconhecendo-se, tem medo de si própria, das suas dúvidas. O eu
pessoal é possessivo e tem medo das dificuldades, buscando sempre proteção e
assistência. O materialismo espiritual é esta busca do ego, de soluções precisas, busca de uma noção
de solidez, de estabilidade, em que tudo deve ter um porquê. Isto é auto-ilusão,
querer assegurar-se exageradamente de que tudo será como se quer, sem
surpresas, asséptico, controlado de antemão.
É o logro em que todos nós caímos;
querermos assegurar-nos de antemão do êxito, qualquer que seja o ensinamento
que estamos a receber. E ao fazermos isto caímos no reducionismo ideológico e
transformamos a doutrina em utopia, mesmo que seja a mais espiritual.
E este é o trabalho essencial: quando
se quer criar uma fraternidade, quando se quer trabalhar com uma determinada quantidade de pessoas,
somos obrigados a ir mais além destes disfarces, mais além destas auto-ilusões.
De outro modo, todas as relações estabelecidas com os demais nunca serão
verdadeiras. Basear-se-ão nas aparências, no parecer e serão, por conseguinte, efémeras e
superficiais, distantes da fraternidade, do intercâmbio verdadeiro, do amor
verdadeiro que não é simplesmente o fato de consolar a pessoa que pede amor ou
de tranquilizá-la porque necessita que se lhe diga que é importante. Às vezes, o amor
verdadeiro pode causar sofrimento e não ser sempre brando. As atitudes
verdadeiras não existem, mas sim as relações verdadeiras. A atitude verdadeira,
permanente neste mundo, não existe visto que o que hoje é bom pode ser mau
amanhã. Porém o "eu" necessita sempre de coisas similares para se
consolidar, para se sentir mais forte; caso contrário sentir-se-á perturbado. O
eu compraz-se no hábito.
Esta busca da estabilidade pelo eu, é
um reflexo condicionado. Este ego auto-ilusório a que me refiro, é burguês, é o "eu" do burguês. As sociedades
burguesas apareceram quando as sociedades e sistemas tradicionais foram
destruídos. Foi então que surgiu a sociedade burguesa com o seu ideal de protecionismo, de
aparências, de nada querer mudar, em que tudo estava bem definido e toda a
gente muito bem educada, segundo um código formal de bons costumes.
As ideologias são as do materialismo, de esquerdas
ou direitas, de cima ou de baixo. Esta forma que toda a gente mais ou menos
conhece, e que chamamos burguesia é o nascimento das ideologias reducionistas,
seguradoras, higienistas, como expressão de uma lei auto-ilusória que necessita de referências formais
muito estritas (não se deve sair de noite a partir de tal hora, não se deve
fazer isto ou aquilo...). O pequeno eu auto-ilusório necessita de coisas
sólidas e utiliza para proveito próprio a ciência, a espiritualidade, os
padres... enfim, tudo o que necessite para se sentir mais seguro de si. Por
exemplo, para o burguês casar-se pela igreja não significa espiritualidade;
fá-lo antes por um código social, para tranquilizar as pessoas e ficar bem visto. Não se
trata de uma vontade interior de transformação. Ainda que não acredite nisso
acaba por fazê-lo para ficar bem visto. Esta mentalidade não ama o risco nem o
sacrifício, nem tão pouco busca uma aventura interior; segundo esta visão, vale
mais ser cabeça de ratão do que cauda de leão.
A evolução e universalidade deste tipo
de cultura nos últimos séculos - a do pequeno eu auto-ilusório -, engendrou a
civilização na qual vivemos e provocou as dificuldades que todos nós
encontramos para sair desta auto-ilusão que nos fez acreditar em mentiras e que
nos impede de ir mais longe e de compreender o que é a Tradição, a busca
espiritual verdadeira.
O simples fato de
compreendermos que estamos todos encerrados neste tipo de cultura não é
suficiente para crer que já não estamos ligados a ela. Vai ser muito difícil afastar-nos
desta realidade, que não é simplesmente social como por vezes se pensa, mas que
está muito mais profundamente arraigada em cada um de nós, portadores de
expressões próprias do materialismo espiritual, incluindo os que se interessam pela atividade espiritual.
É por esta razão que muitos espiritualistas se interessam pelos discos voadores
(trata-se de uma máquina, claro está), pelo Egipto; porém, o
que lhes interessa dos Egípcios é saber "como é que construíram as
pirâmides" e não a Iniciação ou o desenvolvimento interior.
Se derdes uma
olhadela nos livros do tipo esotérico vereis que, em geral, as pessoas se interessam
pela sua saúde ou pela comida, e muito pouco pelo espírito metafísico. São
muito poucos os textos sobre a ideia de renúncia e do combate interior. Se perguntardes numa
livraria o que é que vendem mais no campo esotérico, dir-vos-ão que as pessoas
procuram os conselhos práticos: como casar-se com a ajuda da astrologia, como
cozinhar "saudável". E à parte estão os textos herméticos que têm,
por suposto, muito pouco êxito. As pessoas que se interessam de verdade por uma
busca global no plano metafísico e prático são muito poucas. E isto desde todos
os tempos. Embora a experiência ameace constantemente fazer cair o ego do seu
castelo de cartas, fruto das suas elucubrações intelectuais e da sua autocomplacência,
sempre que devemos efetuar uma prova face à realidade, procuramos sistematicamente neutralizá-la.
O eu tenta a todo o custo, quando sente
que a experiência real demonstra a sua fragilidade e as suas dificuldades,
criar uma espécie de complacência e de reflexo condicionado para neutralizar
todos os caminhos que o levariam a superar a prova. Então há bloqueio, uma
tensão, uma vibração que nascem do fato de não se querer, na realidade, passar
a prova. É por esta razão que, muito provavelmente estareis um pouco irritados,
cada um num momento diferente porque o que é prova para uns não o é para
outros.
A chave da maioria das nossas
crispações é esta: a vontade de neutralizar a prova. E a prova não pode ser
neutralizada; um mundo neutro é o mundo burguês, higiênico e sem
parasitas, em que toda a gente está limpa e vacinada. Nenhum risco, não há
micróbios.
Foi esta ideia de mundo
limpo e higiênico que conduziu o nazismo a exterminar tantos seres humanos. Porque o
nazismo é isto: um ideal de higiene e apolinismo excessivos. Esta crença
continua a existir: vede o que se passa, por exemplo, no Cambodja. Este é o
resultado de querer neutralizar tudo; então, tudo seria perfeito posto que tudo
seria neutro. Assim, pois, a nossa sociedade está obcecada pela neutralidade,
pela não-ação. Isto reflete-se nas modas assexuadas, nas opções políticas neutras, etc...
Desta maneira se exprime a natureza do
pequeno eu, que é o verdadeiro vencedor dos finais do século XX; estamos
possuídos pela sua filosofia que neutraliza a prova do enfrentamento com a
realidade. Na verdade vivemos por procuração, apreendendo uma realidade branda
fabricada pelos meios de comunicação. A nossa sociedade vive experiências
verdadeiras e terríveis que a deveriam fazer refletir; a guerra
do Líbano é uma experiência terrível: neutralizamo-la. Vivemos Tchernobyl:
isolamo-lo. E assim nada chega à globalidade, pois tudo tem de ser neutralizado e
rapidamente. Não obstante o mal-estar existe. Tomemos, como exemplo, a droga:
há que neutralizá-la. Porém não se pergunta: "porque é que os jovens se
drogam?". Luta-se contra os traficantes, mas não se luta contra a
sociedade que empurra os jovens para a droga, porque não encontram outra
alternativa. Se o fizéssemos, teríamos de nos enfrentar com o verdadeiro
problema, e isto não é possível dentro dos sistemas atuais.
Por isso não há dicotomia entre a compreensão do que vivemos no interior de nós mesmos e o que a
humanidade está a viver coletivamente,
visto que não há tanta diferença entre
indivíduo e coletividade, pois as regras são as mesmas para ambos. É possível que ao longo da
evolução humana, o perigo da humanidade ficar submersa pelas forças do pequeno
eu, nunca tenha sido tão grande como agora. No passado, houve sempre um sábio
ou um grupo de homens que tomavam as medidas necessárias para lutar e erradicar
o perigo. Atualmente, nenhuma destas duas possibilidades existe; por consequência, o problema
é muito mais complexo. Além disso, não seria suficiente erradicá-lo do
exterior, já que isto seria simplesmente criar um desequilíbrio. O que se trata
agora é de saber se o homem pode ou não pode com os seus próprios meios e sem
ajuda do exterior, através de um trabalho pessoal, levar a cabo uma
transformação consciente.
Esta é a razão pela qual estamos a viver
a nossa experiência. Mas tão pouco devemos cair numa depressão ou visão
apocalíptica; pelo contrário, há que compreender que esta é uma oportunidade
única para ir muito mais além da experiência humana coletiva. Por
conseguinte, há que ter cuidado com a neutralização, porque para evoluir somos
obrigados a passar por uma confrontação com a realidade, pela dor, única
possibilidade de saída deste estado de confusão, de falta de discernimento, de
excesso de agitação. Estamos todos demasiado agitados. O que irão pensar? O que
irão fazer? O que devo fazer? A agitação produz confusão. Uma luz clara obscurece-se com a
agitação. Se nos agitarmos menos, veremos as coisas mais claramente, pois
estaremos mais calmos. As pessoas acalmam-se de modo muito diferente: uma
bofetada ou uma carícia, uma palavra... de todas as formas o objetivo é acalmar.
Os meios são distintos segundo as pessoas. Não existe uma solução única.
Segundo a
tradição, avançar no caminho espiritual significa combater a nossa própria
confusão e descobrir o nosso estado de atenção, condição original do nosso
espírito, e descobrir que o nosso estado de atenção precede a nossa encarnação,
que não é algo que construímos no momento, mas que é como a Alma. A nossa monada,
a nossa luz interior não necessita ser iluminada.
A nossa luz
existe desde o princípio e não temos nada para acender. O nosso dever como
filósofos é desembaraçar o caminho do que se interpõe entre esta luz e nós.
Todos temos o nosso Eu Superior; o que nos falta é a consciência disso. Todos
somos a encarnação de um ponto de luz. Cada um de nós têm, como dizem os textos
sagrados, a chispa, a chama ou o fogo. Mas se estivermos demasiado fechados,
não captaremos deste fogo mais do que o calor. O materialismo espiritual
cegou-nos com o seu utilitarismo aproveitando apenas o calor da chama interior
que temos em nós, esquecendo a sua Luz. Para ver é necessário abrir os olhos;
ousa e vive a tua luz.
Fernand Schwarz
Antropólogo, Cruz de
Paris em Artes, Ciências e Letras.